Terminei A Escola do Paraíso de José Rodrigues Miguéis, primeiro livro que leio deste autor, e devo dizer que é uma pena só agora o ter encontrado. Gostava de o ter lido há uns bons anos atrás, só teria ficado a ganhar, por tudo o que invoca e acrescenta à nossa existência e à sua constante construção. Um romance deslumbrante, que acompanha a vida e aventuras de um petiz, o terno Gabriel, pelas ruas e vielas de Lisboa, e atalhos e percalços da vida e do desenvolvimento da identidade pessoal.
Recria o universo infantil de forma tão completa, tão exacta, que chega a ser assombroso como o autor consegue regressar aos anos da inocência, os anos de ouro como lhe chama, como atinge aquela linguagem simples, directa, inocente, quase como uma "regressão espiritual" e consegue escrever como quem pensa e vive enquanto criança. Até agora não consigo perceber como o conseguiu de forma tão correspondente, daí o assombro!
Escreve na terceira pessoa, mas quase sempre no Presente; confunde-se, mistura-se, dilui-se ele próprio (autor) na vida daquele personagem, e vão convivendo lado a lado, ao mesmo tempo dois e um só, e consegue-o de um modo tão ténue e subtil, natural, com enorme genialidade. Depois, é um livro que tendo um fio condutor, tem quebras, quase como um mero alinhamento cronológico de passagens entrecortadas da vida do Gabriel e sua família, e vai seguindo, como pequenos contos interligados mas independentes e autónomos, que se juntam para constituirem este romance, o que é também altamente original e diferente do que li até agora.
É um livro magnífico, ainda mais passando-se em Lisboa, no período imediatamente anterior à Instauração da República, e logo após a mesma, e que remete (para quem lá viveu) para o espaço e vivência muito própria e característica das ruas e gentes da cidade, mesmo que num período algo distante, e caracteriza-a genuinamente e de forma encantadora. Gabriel é o mais pequeno, personagem central; tem uma irmã, Águeda; um irmão, Santiago (o mais velho dos três); pai e mãe, os avós paternos galegos, e mais uns quantos tios e primos, dos quais se destaca a figura e personagem incrível do tio Amândio, o Boi-do-Val'.
José Rodrigues Miguéis é mais um daqueles escritores geniais que Lisboa criou, na linha de Dinis Machado, José Cardoso Pires, Mário Zambujal (ainda que de uma geração anterior), mas insere-se nesta escrita densa, alegre, arejada, bem-humorada, humanizada e vivenciada, recorrendo muitas vezes a termos e expressões típicas e esquecidas, descritiva de costumes e personagens como nenhuma outra se iguala na nossa literatura, sendo que JRM atinge um nível e diversidade de vocabulário ainda superior e consegue uma beleza raríssima e singular, um encanto mágico adicional que ainda não tinha encontrado, em algumas passagens e situações que cria, e que comovem profundamente pelas ideias, palavras e sentimentos que abarcam. Um livro encantador, altamente recomendado, e um autor que continuarei a descobrir.
Aqui ficam alguns pedaços que tirei...
"Senta-se no muro do tanque, todo coberto de líquenes e musgo, e era capaz de ficar horas a ouvir a caleira de pedra a despejar brandamente a água da nora, e a olhar o tremor da superfície onde brincam alfaiates, glissando como hidroplanos, os limos de veludo molhado, o fundo verde-escuro que o atrai, os reflexos da latada, das nespereiras e do céu. Só não tem peixinhos. Mas há tira-olhos, azuis e encarnados, que voam rente à água, não fazem mal à gente."
"Há no Circo, como no Amor, uma tristeza de impossível."
"Foi quando, da calma da noite e da rua - como um trovão subterrâneo que anuncia o sismo, ou o marulho duma vaga de fundo em plena calmaria - se ergueu de repente um confuso clamor e tropel alarmante, que em rápido crescendo se veio aproximando e definindo."
"Mas a fantasia prolonga e repete esses momentos em duração, como um tema musical persistente: com esta tendência, tão nossa, a deixar que os instantes felizes ofusquem, em retrospecto, todos os anos e dias infindáveis de monotonia e frustração."
1 comentário:
Mesmo não tendo nada para dizer apetece-me comentar tudo o que vais escrevendo, só para ires tendo a certeza que te lêem, para que não hesites quando te apetecer escrever por aqui.
Abraço mané!
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